EMBRIAGADOR

24/04/2011 19:28

 

EMBRIAGADOR

 

Acordo extenuada pela tensão de tantas fugas noturnas, inúteis, posto que o temor à fera que me espreita ao primeiro fechar de olhos ainda me gela os ossos. O dia amanhece com o céu azul demais, demais! O verde das folhas, translúcidas ao sol, que a tudo colore, reluz em esperança em meu coração. Respiro profundamente e confiante estendo minha mão ao convidativo raio de luz.

Borboleta agonizante na calçada. Meus dedos seguram suas asas no intuito de amenizar-lhe a tragédia. De suas entranhas dilaceradas escorre um líquido viscoso formando uma pequena mancha verde que aos poucos adere ao cimento. Num arrepio descubro ter sido ela ferida por esmagamento e que o único legado de sua existência tornar-se-á cinza como manchas de óleo e chicletes pisados até a indiferenciação total de qualquer testemunho seu. Será a morte inevitabilidade tão fatal que acabe por levar consigo os sinais de sua própria passagem? Será a morte, da morte, da morte...?

As ondas são grandes, salgadas, de uma tepidez uterina. Lá em cima, o homem em asa leve, voa de encontro à lua, separados apenas pelo etéreo azul. Dali, não mais haverá retorno possível da consciência deixada junto ao asfalto cinzento. É incompatível a coexistência de Deus e do cinza. É incompatível a coexistência da consciência e do êxtase. Entorpecido, o homem venera a Deus.

Homem fala que lhe falta a mulher para realizar uma viagem...Impotente confessa num dolorido sussurro:é impossível só! Em cúmplice solidariedade murmuro: me falta o homem!...

A viagem...o mar...o homem... giram todos na asa de uma borboleta deixada sobre a terra úmida em meio a plantas florindo. Terá sido esse seu destino? Será mais feliz sua morte de fecundante húmus verde? Ela é borboleta morrendo e não sabe. Será a morte orgástica como a perda de consciência junto à lua? A borboleta, silenciosamente imóvel em seu ser de pequeno deus frágil, não responde.

A lua, apenas uma foto. O mar, uma intuição. O homem e a mulher, apenas um desejo. O céu azul, um perigo maior.

Maiores, os temores azulam-se à luz que a tudo circunda e a tudo invade, brutalmente, expondo interiores e exteriores. Pré-históricos, anteriores e eternos à existência do próprio homem, revelados à luz, obrigando-me ao uso do sentido da visão, e percebo inútil, a essa altura, desviar o olhar.

Sem querer, deparo-me com os limites infinitos da essência humana, transcendente à minha frágil mortalidade. Tomada de amor, sucumbida em orgasmos, espelho em meu ser a visão da face do monstro sagrado. No ar, seu leve murmúrio entorpecedor, um cântico.

 

04/87