URBANIDADE ANIMAL

05/06/2011 20:21

 

URBANIDADE ANIMAL

 

Perdizes é um bairro de São Paulo onde qualquer um que se aventure a caminhar se identificará mais com um alpinista do que com um mero pedestre. A maioria de suas ruas é de ladeiras bastante íngremes. Restam poucos quarteirões, quase planos. E são esses os preferidos pelos donos de pets para a caminhada diária para que seus bichinhos possam aliviar suas necessidades e se socializarem. Benefício estendido igualmente aos donos que acabam formando uma comunidade anônima e alegre de donos de bichinhos de estimação. Todos os cães têm nome. Os donos,são lembrados pelas histórias que contam.

E os cães que na última década foram agregados aos donos como verdadeiros filhos (aliás, uma colega de encontro fortuito possui uma camiseta com a seguinte estampa “mãe de cachorro também é mãe”), usufruem de sua característica de aliar-se ao homem em troca de alimento no extremo da urbanidade. Não são raros os cães que adoram passear de carro, a fuça para fora da janela farejando avidamente todos os odores no ar.

Já existem várias creches pelo bairro, algumas até com serviço de perua “escolar” que buscam e levam aos seus lares, dos grandes aos pequenos, para terem um dia repleto de atividades: socialização, adestramento e até hora para descanso. Tive uma Cocker que vinham buscá-la de carro para o serviço de tosa. Era a primeira a oferecer-se para entrar no carro, a despeito de depois ter de enfrentar banho e secador.

No entanto, com tantas coisas à disposição de donos e cães (acredito que haja uma loja de pet para cada três quarteirões no bairro), ambos perdem algo que adormece no íntimo de ambos. Há algum tempo sob a marquise de uma padaria desativada na esquina de casa havia um grupo de moradores de rua com uma cadela que logo deu cria. Eram três mestiços de terrier que olhávamos condoídos, a sarna alastrando-se apesar dos vermífugos e alimentação fornecidos pela vizinhança. Há mais de um ano foram desalojados dali. Mas outro dia, indo para o serviço, ironicamente passando pela calçada de uma das famosas creches caninas da região, a moradora de rua subia a ladeira com dois daqueles filhotes, ambos crescidos, correndo soltos, brincando entre si, felizes, como festa que passa como vento. Ela, ao encontro de nosso olhar, sem vergonha da falta de vários de seus dentes, deu um sorriso misto de orgulho e felicidade pelas lindas crias.

Outra vizinha, mãe de três filhos adolescentes, taciturna e bastante fechada provavelmente pelas dificuldades de sobrevivência após a viuvez, viu sua casa presenteada com uma pequena coisinha preta, saltitante. Descendo os meus cães para o último xixi noturno, observei-a correndo pela calçada brincando com aquele filhote repleto de energia.

A primordialidade daquela alegria evitou que eu estragasse tudo fazendo um discurso sobre a necessidade de uma coleira em meio a um universo de veículos. Ali era ela novamente o amor feliz e incondicional que une uma criança a seu cão e que, a urbanidade tem roubado, a homens e cães, com todos os seus fetiches de consumo. Nessa hora, homem e animal se irmanam como filhos do mesmo Deus.

03/2011