A RAPOSA E O PINTO

12/06/2011 20:45

 

A RAPOSA E O PINTO

 

Foi assim: súbito. A chefe, recém chegada de suas férias, no andar de cima, e à minha frente, um cliente, de pé, parado, monossilábico, solicitando seus exames médicos. Consultei o número de seu prontuário no cartão e fui pegá-lo...mas não o encontrava.Procura, procura, procura...olha para o homem, imóvel, e gente se juntando em volta, cada um com sua própria solicitação.  Corre, atende a cada um rapidamente e ansiosa, volto a procurar a pasta do paciente e ...nada! Não seria melhor o senhor voltar outra hora para buscar o resultado dos exames? Não dá!... É para levar para outro médico! Nova procura, no mesmo lugar, em outros lugares...e nada! Mais ajuntamento de gente. Atendo o pessoal e torno a procurar a pasta. O homem, impassível! Senhor, não dá para vir amanhã prá gente procurar com mais calma?(é sempre bom assinalar a gente, o que dá para coletivizar culpas e responsabilidades, embora de verdade, eu sozinha, tivesse de dar conta de todo o recado, se não ocorressem contratempos. E que contratempo era ele!).

Já havia se passado quase uma hora, e ele, sentado, como uma estátua... Procura, procura...atende, procura, procura...Não dá mesmo? É para levar para outro médico que está com consulta marcada para hoje! E o hoje soou como a hora da execução!Eram quase três horas da tarde, a que hora seria o raio do outro médico?!

Então, o que era tensão e tentativa de contornar o tempo para resolver a situação transformou-se em pânico. O corpo teso, a voz muda gritando pegue a bolsa e vá embora, que se dane, não há o que fazer! Na verdade eu me sentia como um pequeno pinto assustado, correndo prá lá e prá cá enquanto sabe-se lá o que fazia a raposa no andar de cima. Se farejasse o que ocorria, o cheiro de sangue estimulado em sua mente a transformaria numa raposa voraz e sedenta, ser híbrido de lobo que era, e que diante de uma caça acuada assanhava-se por aplacar a fome e quem sabe assim livrar-se de seus instintos insuportáveis para si mesma.

Pensei em pedir socorro ao homem. Se ele soubesse da realidade da situação, talvez, tomado de compaixão, adiasse sua consulta. Mas como no serviço público, consulta marcada é prêmio a que os pacientes se agarram como última tábua de salvação, ele também era uma vítima, da burocracia, da inflexibilidade impessoal, das migalhas do sistema de saúde que se transformam em última esperança. E se ele, numa revolta inútil, saísse da passividade procurando pela direção, supondo que lá de cima descesse o todo poderoso capaz de solucionar as mais simples e complexas questões, entraves, equívocos, ou seja lá o que for...?

Diante de meu pavor, talvez tivesse ele tido o bom senso de perceber que eu já estava fazendo o possível e que chefia, nada resolveria. Em desespero, corri a pedir auxílio a uma colega auxiliar de enfermagem. Quem sabe, ligando para o laboratório? Não dá, leva dois dias para chegarem os resultados...por fax! Mas como no profissional de saúde que escolhe a profissão, compaixão é mola propulsora, tornou ela a mim a paciente: largou o que estava fazendo e lá foi procurar a pasta enquanto eu, com o coração espremido na garganta, atendia a outros, que a essa altura, me pareciam mais uma multidão.

Milagre! Ela achou! Ela de branco, ali em cima da escada, com o prontuário em mãos, era a própria visão do paraíso, do anjo da guarda! A prece atendida, a paz que finalmente voltava em batidas compassadas após à quase paralisia diante da morte.

Olhei dentro da pasta... e lá não estavam os exames. Mas... há há! Há dois meses o senhor assinou a retirada de vários exames...! Mas aqueles... eram outros! Os que eu quero, foram coletados há três semanas! E ele ali, absolutamente imóvel! A que horas seria a tal consulta? Parecia que ele seria capaz de permanecer ali esperando, impassível, pela eternidade, enquanto eu, à beira de um enfarto, padecia cada segundo como se fosse um milênio. Só restava apelar novamente para o anjo, e bem rápido, antes que a raposa descesse e sondasse com seu olhar híbrido o corre-corre, a tensão indisfarçável. Quase que puxando o homem pela mão levei-o ao anjo em outra sala.

Era quase fim de tarde e percebi que nem notara quando o homem foi embora. Fiquei sabendo, depois, que havia um jeito de verificar se os resultados de exames haviam sido enviados para nós ou não. E não é que não chegaram? E que é possível pesquisar isto?( antes de enfartarmos!). Mas parece que à raposa não convém que o sangue de suas vítimas flua tranquilamente. Um pulsar mais forte, um vaso rompido, o sangue escorrendo, gotejando, translúcido e salgado, era sempre a chance de estancar sua fome e sede insaciáveis.

À noite, só então reparei que, antes, eu estivera de férias por quase vinte dias e que, provavelmente, eu não tinha nada a ver com a pasta arquivada em lugar errado. Mas aí, já era eu a pensar, eu não o pinto a sentir. E diante de uma raposa, a imperfectibilidade humana não constituia argumento. Até porque, nas fábulas, como a raposa quase sempre leva a melhor, o pinto talvez prefirisse saltar para a panela.

Mas não aconteceu nem uma coisa nem outra! O pintou beijou e abraçou ternamente a cabeça do anjo, pois se ela também era anjo porque sabia de tantas outras histórias sobre a raposa e outros pintos...mas aí, são outras histórias!

 

Sandra Caldas

 

10/2010