AGRURAS

30/04/2014 15:30

AGRURAS

 

Lembro-me de minhas viagens com meus pais por esse Brasil imenso. Tínhamos um Opel verde musgo claro que sobreviveu o quanto pôde. Era fim dos anos 50, início dos 60.

Íamos parando para almoçar em restaurantes à beira da estrada, em geral, improvisados com algumas mesas na sala da casa de moradia. Mesa farta, água fresca, algum refrigerante e uma acolhida amorosa.

Não raro, uma indisposição me acometia enquanto criança. Em busca de meu alívio, traziam uma garrafa de vidro repleta de leite denso, saboroso, e não pasteurizado. É claro, só piorava meus enjôos. Mas para além das cortinas de chita que separavam o restaurante da intimidade da casa, eu era colocada numa cama, igualmente coberta por um tecido floral, macio, a brisa fresca a entrar pela janela.

Hoje me reviro em tentar compreender o que mudou nesse povo simples e acolhedor, atualmente tão embrutecido nesse início de século XXI nos grandes centros urbanos.

Ao invés do sorriso tímido e da vontade de agradar, o que se ouve é aquele tom exasperador de quem a qualquer momento vai sacar da peixeira. A fala nervosa, embolada pelas palavras que se atropelam num sotaque incompreensível de uma polifonia desarmônica, embrulhada pela falta de coordenação de dados, de pensamento, expressando o mundo confuso em que foram jogados à mercê da labuta diária para sobreviver, com os trabalhos mais desqualificados e mal pagos.

Em meio à selva urbana dominada por uma classe supostamente superior e que a cada dia os empurra para um tipo de vida mais difícil, em moradias precárias na periferia da periferia, as horas intermináveis numa condução em condições degradantes que, per se,já dariam uma jornada de trabalho completa, enquanto os filhos, sós, à mercê, sobrevivem só mesmo pelo poder da resistência forjada pela luta há tantas gerações.

Atrelados a um analfabetismo que, em terra natal, ser letrado, pouca ou nenhuma serventia teria, aqui, pela jornada que se emenda quase sem descanso, se torna bem inacessível, tão longínquo quanto a encenação colocada pela mídia como real, os modos, os bens, o universo das patroas e patrões, ricos em espezinhar a humilhante ignorância a que estão subjugados, e contra a qual, como lutar?

Entre seus direitos de cidadão e seus sonhos, o passado e o presente, a vida simples e o universo tecnológico, há uma discrepância que não consegue compreender, mas que apenas se presta a machucar, humilhar, embrutecer. Como não se exasperar diante deste mundo devorador que, sutil ou explicitamente, mas de maneira persistente, o empurra para as margens da civilização como detrito indesejável?

Acostumados à carência ditada pelas estações do ano, não percebem que a sazonalidade maior, colocada pelo universo criado pelo homem à sua vida, os aterra na única estação que conhecem: a da agrura.

 

04/14