DONA LULU

07/03/2011 15:26

 

DONA LULU

 

Ela foi chegando assim, muito recatada, humilde, cabelo preso em um coque simples, assim como seu vestido e suas sandálias. Não aparentava mais que cinqüenta anos. Trazia nas mãos um pequeno recorte de jornal. Tocou a campainha e ao abrirem a porta, com toda a educação perguntou: é aqui que estão precisando de empregada doméstica?

A dona da casa, uma pequena comerciante de seus trinta anos, de cara gostou da simplicidade da candidata ao emprego.Por favor, pode entrar...sente-se. Admirou-se mais ainda dos bons modos recatados da senhora ao sentar-se, ajeitando a saia para cobrir os joelhos. Qual é mesmo seu nome?

-Lourdes...eu me chamo Lourdes!

-Tem experiência em serviços domésticos?

-Na verdade, apenas em meu próprio lar. Sabe como é, fiquei viúva há pouco tempo, meu filho se casou e foi morar longe, e a pensão do finado mal dava pra cobrir o aluguel!...e também não gosto de ficar desocupada... minha vocação é cuidar de casa. Adoro ver tudo arrumado!

Os olhos da patroa brilharam! Nada melhor do que alguém que gosta de fazer o que ela mais detestava: lavar, passar, cozinhar, e pior, limpar! Para evitar que a candidata buscasse outros empregos, foi logo anunciando: sabe, aqui o serviço não é muito. Só eu e meu marido que trabalhamos fora, o cachorro de estimação...mas tudo tem de ficar direitinho... e dormir no emprego, sabe como é, às vezes recebemos visitas de clientes para jantar ou parentes para um almoço especial nos finais de semana...mas a folga de domingo, depois da louça lavada, é claro, é direito teu, irrevogável!

-Nem carece...na minha idade, não tenho nem pra onde ir..qual o nome da senhora?

- Maria Zilda, mas pode me chamar de dona Zizi,e meu marido é o doutor Honório, advogado. Ah, o cachorro é o Pitoco, mimado, mas um amor!

Mais feliz Dona Zizi não poderia estar. Suas preces foram finalmente atendidas. Uma empregada em tempo integral, ganhando salário mínimo (é claro que ainda haveria as deduções com moradia e comida, mais tarde falaria sobre isso!). Lourdes me acompanhe até seu quarto onde poderá colocar suas coisas!

Apesar de a casa ser de interior, espaçosa, jardim, o quarto de empregada não passava de uma dependência para empregados (ainda queria entender por que dependência, depende do empregado? Se depender-desculpe o trocadilho-, da pirâmide social continuará sendo apenas um apêndice arquitetônico, um lapso, uma vírgula a colocar cada pessoa no seu devido lugar).

A cada dia um agrado, uma surpresa para os patrões. Lençóis com água de alfazema borrifada, que a Lourdes colhia no jardim, pão-de-ló para o café da manhã, o uísque do patrão com uma pedrinha de gelo de água mineral, tão logo ele punha os pés em casa.

Assim, aos poucos, Lourdes, agora dona Lulu, foi se tornando uma pessoa da família, querida mesmo. Mas seu espaço pra lá da vírgula, com desconto de moradia e alimentação, não passou despercebido. Pelo contrário, bem ressentido, pois se até o Pitoco tinha almofada de pena de ganso no sofá exclusivamente para ele, por que haveria ela de ter de se virar com um travesseiro mal cheiroso recheado com pedaços de espuma? E ai de quem chegasse perto do sofá, era um rosnado só!

Mas a Lulu tinha seu jeitinho. À tarde, separava sempre uns bons nacos de carne e chamava o Pitoco para o quintal. Enquanto ele se fartava e depois dormia pesado para fazer a digestão, lá ia a Lulu para o sofá assistir ao Vale A Pena Ver De Novo, Sessão da Tarde e depois corria pra preparar o jantar. Não demorou pro Pitoco ver em Lulu sua nova dona e começar a dividir o sofá sem reclamar. Mais uma maravilha da dona Lulu. Quem diria! Exclamava admirado o  doutor Honório, que antes não podia nem chegar perto da mulher no sofá. Finalmente, chegou alguém para domar a fera!

Apiedados de tanta dedicação e do aperto em que ela vivia, logo os patrões convidaram dona Lulu a assistir à novela das oito na sala, afinal em nada atrapalhava a programação do casal, já que invariavelmente dona Zizi não gostava de perder um capítulo e só o fazia a contragosto quando era obrigada a receber convidados de negócios do marido.

Discreta, nessas ocasiões, dona Lulu se retirava para a cozinha aguardando silenciosa o término do jantar para recolher a louça e lavá-la.

Mas como em cidade do interior a porta é sempre aberta para os parentes e para a vizinhança, não tardou para que o casal chamasse dona Lulu para participar dos churrascos de fim de semana, tão informais. E dona Lulu, não fez por menos. Sabia agradar às visitas. Preparava a sobremesa predileta dos convidados mais próximos, e assim se aproximava. Nos primeiros churrascos, timidamente pegou dois espetinhos dizendo-se já plenamente satisfeita. Depois, não só parecia insaciável, como também se servia  de umas latinhas de cerveja. E ali, no quintal em meio aos parentes dos outros, não vacilava em participar da conversa. Estava sempre pronta aos bons conselhos, como uma avó, tomando sempre partido favorável, principalmente dos parentes dos patrões, por mais equivocados ou mal intencionados que fossem.

E com o dinheirinho que recebia pela morte do marido foi também se arrumando, tratando de se tornar mais apresentável: comprou umas roupas mais floridas, pintou o cabelo, uns pares de sapatos de saltinho, um discreto colar de imitação de pérolas, um par de brincos combinando, um batom discreto e logo passou a sentar-se à mesa junto com os patrões no jantares especiais. Ninguém perguntava, então era apenas, a tão simpática dona Lulu – da família - servindo com primor o jantar. Falava mais que a patroa, mas sempre com gentileza, emitindo opiniões discretas sobre a economia, o alto custo de vida, como bem convém a uma boa dona de casa.

Mas aconteceu um dia, depois de algumas latinhas de cerveja a mais durante um churrasco, a parentela pegou como assunto gente espaçosa que ocupa o lugar dos outros. Aí, dona Lulu que havia tirado uma motocicleta num consórcio para dar umas voltinhas por aí, saiu-se com essa: sabe que o Honório mal deixa espaço pra eu guardar minha moto na garagem e outro dia tirou uma fina de tinta com o carro dele? Dona Zulmira e o doutor Honório se entreolharam, engasgaram, mas como empregada em tempo integral e quase de graça está em falta no mercado, mudaram de assunto. Dona Lulu, já meio alta e dormente, arrastou o corpo para a sofá.Estirou-se toda ao lado do Pitoco, de barriga pesada de tanta lasca de carne, abraçou-o e ressonaram, um sono profundo, repleto de sonhos, que se realizam.

02/2011