ECLIPSE

30/08/2014 18:43

ECLIPSE

 

Uma chuva fina e gelada não impedia os passos apressados de pessoas encapotadas à vasculha de novidades de consumo nos shoppings de bugigangas na Avenida Paulista. Em meio aos que passavam, um pequeno corpo disforme. Pés tortos, pernas curtas e finas, inviáveis para o sustento do restante do corpo, igualmente esquálido, despontando sob surrada camiseta regata o volume de uma corcunda.

Sentado no meio do passeio, erguia, pedinte, um vasilhame plástico descartado de algum escritório, gotejado pela garoa persistente. De súbito o rapaz sai de sua posição sentada. Deixa o vasilhame vazio de lado, põe-se de quatro, as mãos nuas, dobradas para melhor apoiarem o corpo, e se dirige a um bueiro no meio da calçada. A sincronia de movimento de braços e pernas, semelhantes às de um cão, sem dono, ao abandono. De seu calção largo, sem que precisasse fazer qualquer movimento chamativo, por pudor, deixa que lhe escorra a urina no banheiro improvisado.

No ônibus, um cadeirante, acompanhado por uma moça. Seu tronco grande, o pescoço forte, mostram a fortaleza que deveria ser, antes de não mais andar. Num ouvido, um fone, no olhar, uma incógnita, mas ao descer do ônibus, pela janela avisto, o vazio das mangas de seu pulôver, das pernas de suas calças, como a justificar o vazio de seu olhar.

No caixa do mercado, à minha frente, outro deficiente, com os braços apoiados em suporte para lhe facilitar o andar sobre as pernas quase inúteis. A pele clara, os cabelos e a barba ruivos. No rosto moço, um sorriso tímido.

Vou-me angustiada pelo destino que coube a estes meninos, pela sociedade que não concede uma sobrevivência digna àqueles que, não lhes bastassem as dificuldades físicas, ainda padecem na miséria material, a miséria do espírito alheio.

Agradeço em meu íntimo pela riqueza de tudo que tenho e peço, que nunca me torne insensível ao amor que move o sol e as outras estrelas.

 

07/14