FLAGRANTE

02/01/2016 19:28

FLAGRANTE

 

Era um filho muito zeloso em relação à sua mãe, idosa, mas altiva, aos setenta oito anos fazia questão de usar salto alto, mesmo morando em um bairro repleto de ladeiras. O filho, atento, sempre que possível, ia buscá-la e levá-la para suas atividades preferidas.

 

Já era noite quando lembraram que precisavam de ainda buscar alguma coisa no mercado. Presto, da portaria o filho interfonou: já estou pronto, por favor me traga uma garrafinha de água mineral!

 

Desciam em direção ao supermercado, ele, com o braço esquerdo segurando-a para evitar qualquer escorregão, na mão direita a garrafinha pet. Estavam a atravessar a esquina quando de repente um carro de passeio grande, vidro escuro parou. Sinal que deveriam atravessar. Mas por algum equívoco de entendimento, assim que deram os primeiros passos pelo asfalto o carro acelerou e brecou em cima de sua mãe, chegando a empurrar-lhe de leve.

 

Foi o suficiente para que o filho atirasse a garrafa de água contra o para-brisa desferindo todos os impropérios possíveis e inomináveis. Quem por ali passava foi se aglomerando diante do espetáculo gratuito, melhor que novela das nove. Aflita a motorista abriu a porta e desceu para ver se alguém havia se ferido. Você?!!!! Há quanto tempo...!Faz mais de trinta anos, a mesma cara de adolescente...e a senhora, dona Luiza, a mesma cara de sempre! E fulano... e siclano, têm visto eles? E a Rosa, casou? Noossa, já tem filhos? Para os transeuntes,uma decepção só.

 

Dona Luiza, afora a vergonha dos xingamentos lançados pelo filho, ficou feliz da vida de saber-se ainda com uma fisionomia parecida com a de trinta anos atrás. O filho, tido como tão bem educado na adolescência, derramava-se em desculpas, que aquele vocabulário veio-lhe num repente e não fazia parte de seu cotidiano. A motorista, também se derramando em desculpas pelo acidente, que não costuma ser desatenta e muito menos ainda indelicada com os pedestres. Acabaram se abraçando, dando beijinhos, trocando e-mails, telefones, e o trânsito se formando, e mais beijinhos, uma despedida interminável.

 

Como é duro desfazer a imagem do flagrante!

 
 

07/2015