HERANÇA

29/05/2011 20:15

 

HERANÇA

 

De minha mãe herdei após sua morte uma máquina de costura que, por total inabilidade minha, quebrou-se. Era delicada e complicada. Mais tarde comprei uma comum, para fazer barras de lençóis, e só. Não tinha competência para mais nada em costura.

Minha mãe, por força da vida e de uma determinação autodidata tornou-se costureira de alta-costura. Começou na década de 50 e trabalhou até meados dos anos 90, pouco antes de morrer. Era uma época em que não havia a roupa massificada, e menos ainda a descartável. As roupas passavam de mães para filhas, sofriam ajustes às diversas modificações do corpo, sempre que as dimensões da peça o permitiam.

Apesar de nunca ter montado um atelier, mesmo com convite de suas freguesas da colônia judaica para estabelecer-se em Nova York, nunca ousou sair de onde se sentia segura. Empilhados a um canto da sala ficavam revistas grossas de fotos coloridas e mulheres elegantes, como a Vogue. Nem sempre os corpos das freguesas se pareciam, nem mesmo de longe, ao das modelos. Mesmo assim, o esmero de minha mãe era tanto, que não havia quem não saísse satisfeita, com a peça com caimento perfeito. Havia até uma senhora idosa que não conseguia manter-se de pé. Mesmo sentada, minha mãe conseguia tirar-lhe as medidas, fazer as provas, e quando a roupa ficava pronta, a senhora de pé com o auxílio de uma bengala e de uma serviçal, feliz verificava que tudo estava em seu devido lugar, sem um repuxado ou a barra mais curta em algum ponto.

Ali chegavam tecidos, os mais finos: palha de seda, brocado, chiffon, tafetá, cetim, crepe, musselina, organdi, popelina, cambraia, chantung, organza...e outros que acho que nem existem mais nessa era do descartável.Os modelos, que me lembro, eram chemisiers, tubinhos, tailleurs, godês..., adaptados sempre às exigências do costume judaico.E quase tudo, era feito à mão: barras, chuleados, pés de galinha simétricos, pespontos, ajours. Não raro, os tecidos eram importados, trazidos na medida justa, e minha mãe se punha sobre a imensa mesa, munida de réguas e giz, montando o quebra cabeça de modelos complexos que se encaixassem dentro das reduzidas metragens de tecido. Certa vez tentou ela me ensinar, ou mostrar seu conhecimento, de costura. De pé, começou a explicar como construir aquele seu super- multi-molde que permitia que dali saissem vário modelos. Desisti depois de cinco minutos. Um jogo de xadrez seria mais simples.

Muitas vezes ela dizia odiar seu trabalho, tinha dores de cabeça para conseguir encaixar tudo, mas na maioria das vezes, com sua voz de quase soprano, enquanto cortava, entoava músicas como Hino ao Amor de Edith Piaff, O Que Será, Será,  esquecida de que nessas horas, em seu ofício, alcançava a felicidade etérea prometida pelas canções como algo distante e futuro.

Tive um relacionamento bastante difícil com ela. Ao seu autoritarismo e natureza intempestiva, respondia com um agressivo silêncio, e por confronto, procurava ostentar valores opostos aos seus. Acabei herdando sua natureza, mas não sua vocação. Meus lençóis apresentavam linhas tortuosas nas bordas, que, por sorte, ficavam sob o colchão.

Anos mais tarde, também por força das circunstâncias, com meus filhos mais novos entrando na adolescência, com pouco dinheiro e o frio chegando, fui obrigada a me aventurar a comprar tecido para fazer um blusão para eles usarem durante o inverno. Comprei soft, e bastante ousada, adquiri também um tecido macio e brilhoso como cetim para usar de forro. Iria fazer um casaquinho forrado, com capuz, para minha filha. Comprei papel grande, tirei-lhe as medidas com a fita métrica, e magicamente ia transformando aquilo num molde. Cortei o soft, o forro, e como a máquina de costura não segurava a linha no tecido sintético, fui obrigada a construir o casaquinho à mão. Quando terminei, percebi que durante todo o trabalho de confecção sentira uma suavidade ao invés do costumeiro pavor de constatar com a tesoura na mão o habitual estrago irreversível. Tive certeza de que minha mãe estivera ali ao meu lado, intuindo-me, não mais intempestiva, mas com uma doçura que me encorajava e conduzia diante da tarefa. Tentei de outras vezes evocá-la para outros trabalhos similares, mas foi em vão. Ela deveria estar ocupada em outras tarefas e eu me via depois diante das peças contorcidas de sempre, quando não remendadas devido a cortes indevidos.

Recentemente minha filha fez um “rapa” no seu guarda-roupa e separou num saco para doação o que lhe parecia inservível ou fora de moda. O casaquinho preto estava ali no meio. Rapidamente peguei-o. Estava novinho. Com um secreto orgulho, usei-o para ir trabalhar nos dias seguintes, agasalhada de seu amparo e de seu amor de mãe, repleta de gratidão.

 

05/11