O ESPELHO INVERTIDO

19/08/2012 17:40

O ESPELHO INVERTIDO

 

Descia a rua a caminho do trabalho num passo pesado. Não poderia dar-se ao luxo de afogar-se na cama. A notícia irrevogável, de abandono do lar, pelo próprio marido, mergulhara-a num choro convulso a noite toda...por várias noites... Os olhos inchados, os passos incertos, como seu futuro. Os filhos em idade escolar, necessitados de bom estudo, alimentação, vestuário, médicos, lazer, empregada para a manutenção do funcionamento doméstico, enquanto ela, recém empregada em serviço de minguado salário, dera com isso o sinal verde à separação involuntária. Tudo era uma escuridão: o passado de frustrações e brigas constantes no relacionamento, os filhos brilhantes, teriam ainda o futuro sonhado? E ela, no meio de um corte no tempo, como um abismo sem fim que ressoava em seu cérebro, aumentando-lhe o pavor de que a única certeza era de que seu lugar no mundo fosse um chorar sem fim.

Através dos olhos embaciados ainda pode ver, descendo a rua em sentido contrário ao seu, uma catadora de lixo e papelão, de chinelas, suja e suada, puxando a carreta quase cheia e pesada. Ao lado, o filho maior com não mais que oito anos, acompanhava  saltitante. Na carroça, sobre caixas de papel, duas crianças menores com seus cinco e três anos. Alheios ao trânsito, à chuva, ao peso da carga e à sua presença, todos riam, gostosamente, brincavam, e ali estava uma família feliz.

Como num espelho de imagem invertida, o pequeno grupo familiar surgia-lhe como uma agressão que a vida lhe jogava à cara, pela incapacidade  de conquistar felicidade para si e para os seus. Não se sentia sequer mulher para junto aos filhos ser uma família. Seus sonhos arrancados como ventre rasgado que sangra às avessas, a morte, e não mais a vida. Sua dor, infamante, aniquilava, enfraquecia o desejo do que lhe parecia agora distante, impossível.

Afogada em raivas e frustrações, não sabia que ali havia um segredo a ser desvendado. Antes, agravava-lhe o sofrimento como senso de oportunidade perdida. E o segredo deles, como o seu, era o presente, sem passado ou futuro. Eles eram sua anti-matéria, leve e luminosa em contraste à sua densidade dura, escura. Ali estava a essência do espírito que independe de condições materiais, mas apenas do presente, aceito, como presente que é e sempre será, sem passado, sem culpa, sem futuro, sem receios. Apenas gratidão, ou talvez, nem isso, mas apenas sendo. Podia ser que o próximo momento presente fosse completamente diverso. Mas ali, a família pulsava como um instantâneo do melhor das férias que ela nunca teve, enquanto ela se sentia oca, como caverna que se arrastasse sem fim, como ferida no vácuo.

Talvez um dia aprendesse a receber a vida como dádiva que é, mas a marca de seu lado mais obscuro, dela ou da vida, talvez nunca soubesse ao certo a resposta, impregnava-lhe cada célula, e mesmo que risse à solta, como um dia descobrira-se, mesmo que voltasse a ver o mar, estaria, para sempre, marcada.

Passou-se muito tempo antes que conseguisse sofregamente recolher os escombros de si mesma. Às vezes o cimento era um improviso, o tijolo disforme, não encaixava, mas foi construindo sua casa. Lentamente, buscava ocultar, a si, o buraco negro interno. Não sabia que era assim mesmo. Se a construção fosse perfeita, não haveria luz sub-reptícia pelas frestas, pelos blocos caídos.

Aprendeu, com o tempo, a rir, como criança que se regala com um doce sem o medo que o doce acabe. Mas no silêncio de si estava a marca, indelével, da humanidade, e que todo o sacrifício do Cristo, jamais evitara.

 

01/2011