O RELÓGIO

09/03/2011 20:55

O RELÓGIO

 

Dormira a noite inteira encolhida, entre o cansaço e o frio, e sem que fosse necessário separar-se das cobertas jogadas aos pés da cama, Lucia erguera-se de supetão num mau humor que a fazia relutar em sair de casa. Mas afinal tinha um compromisso e após muitos ensaios, limpando a casa e lavando roupa, finalmente comeu da marmita a comida quase fria, sem gosto, em poucas garfadas. Para refazer os ânimos vestiu sua saia mais florida e uma malha azul para no fim do dia não enfrentar a mesma tormanta ártica da noite anterior.

Era um dia excepcionalmente lindo. Antecedendo o verão, um vento morno varria o ar. Ao dobrar a esquina, Lucia quase tropeçara na verossimilhança do impossível: um pequeno pássaro branco alçando seu primeiro vôo do dia em direção ao sol. Seguindo-o com o olhar, Lucia o viu perder-se na translúcida imensidão azul e, aos poucos, deixou-se sua alma aquecer-se, seus passos apressados pela manhã perdida. Há muito tempo não pegava o trem de subúrbio e viajar em dias de sol era um de seus prazeres secretos - a paisagem incansável. Na verdade, Lucia corria mais por temer uma reversibilidade metereológica do que um simples atraso em seus compromissos, falha que cometera uma única vez por inocente engano de haver confundido o horário marcado para um encontro.

Na estação,os bancos lotados pelo atraso do trem. Sobre os trilhos, homens trabalhavam com máquinas barulhentas enquanto outros revolviam as pedras de sob os dormentes da linha. Há algum tempo Lucia não ia para aquela cidade de periferia e pouquíssimas vezes havia estado lá, colhendo dados técnicos em seu trabalho de assistente social. Há alguns dias afastada do trabalho, e há muito de lá, apenas compreendia o que deveria ser feito sem que em seu íntimo o sentisse. Mas estava satisfeita. Como ser humano que era, estava incumbida de captar como viviam as pessoas da comunidade frente aos órgãos burocráticos e assistenciais, e sabia que o êxtase desses encontros viria apenas vivendo. Antes, só lhe era possível raciocinar sobre elementos que supunha.

Chegando na cidade, numa lentidão de quem ainda não se integrou ao trabalho, Lucia deteve-se numa banca de camelô para comprar um relógio. Há uma semana que o seu estava conm a pulseira semi partida e há alguns dias, após ter dado um branco no visor, o relógio em números digitais marcava cerca de trinta minutos de atraso. Fôra o tempo que Lucia hesitara entre as duas bancas próximas a se decidir se mandava consertar o velho relógio vagabundo ou gastava mais um pouco e comprava aquele tradicional modelo plástico a que se habituara, 'zero quilômetro' de não sei há quanto tempo guardado entre as mercadorias do ambulante.

De relógio novo no pulso e verificando o dia do mes, Lucia parou antes num bar ao lado para tomar seu habitual café e preparar o espírito para finalmente começar a trabalhar. E trabalhou, com a aceitação de quem sabe que o momento de torpor e êxtase ainda está por vir. Com mansidão percebia aos poucos que naquele lugar as pessoas simplesmente viviam uma cidadania que se estendia a apenas serem mulheres com seus filhos ao colo, as compras para a refeição noturna num saco plástico pendurado no braço, os homens com suas malas de ferramentas voltando do trabalho, e topar na rua com quem quer que fosse era simplesmente a inevitabiliade de um sorriso pelo mútuo e secreto reconhecimento de que a vida é isso, sem adjetivos, substantivos, sem palavras, mas simplesmente vivida.

Tomada por uma tristeza de quem descobre  que da vida não há mais nada a pedir, uma tristeza alegre, sem dor, apenas sobrevivente, Lucia, entoando o som de uma felicidade ausente, aguardava o trem para voltar para casa.

E como quem faz sua primeira viagem, escolheu um lugar à janela, e precavidamente com a bolsa a tiracolo, descansou o corpo debruçando-o na janela, a cabeça pousada sobre os braços entrelaçados. Ali de pé assistia a um desfile de cores, o verde sobre o verde sobre o verde de todos os tons, matéria leve dançando sobre si mesma com reflexos dourados do sol de fim de tarde, as águas do rio,quase seco em seu leito barrento, entrecortado de azul ultramar. Os animais que passavam, cada qual em movimentos inerentes à própria espécie, levando em ruminante saborear a própria existência, a vida ainda intacta.

Em estado de pura contemplação, Lucia não era nem mais pensamento, mas apenas um desejo, indefinido, futuro. Tudo tão bonito! Foi quando aconteceu. Após inúmeras paradas pelas costumeiras estações, o trem estancou e Lucia deparou-se, à altura de seu olhar, com o relógio da estação estilhaçado à sua frente. E de repente o tempo parou.O coração de Lucia, ausente de sua própria respiração, tentou ainda conter seu próprio estilhaçamento. Os ponteiros marcavam dez e dez: a hora de seu nascimento. O trem recomeçou a andar e Lucia, procurando ansiosa pelo lado reverso do relógio, confrontou-se com a dupla e redundante inevitabilidade de dez para as dez. Era a hora em que ela desde criança timidamente aguardava, vestida como uma boneca, deixada pela mãe sentada sobre a mesa para não amarrotar o vestido. Em expectativa, Lucia assistia ao lento e interminável movimento dos ponteiros do relógio, até que, em cúmplice dualidade equidistante marcavam dez e dez. Lucia então, secreta e solenemente comemorava em verdadeira orgia interior seu mais um ano de vida. Alheias ao ritual que fazia, as pessoas convidadas para seu aniversário festejavam o que ela não entendia, e nem precisava.

Sem fechar os olhos, entre uma estação e outra, Lucia chocada vivia seu próprio nascimento, a pedra que a jogara para a vida, sem ao menos pedir-lhe consentimento. O vácuo deixado pelo estilhaçamento, exatos vinte minutos que ela agora tentava transformar no tempo de duração da operação cesariana que a trouxera precipitadamente ao mundo. Sua vida em pedra, desfeita em cacos, foi quando o trem parado noutra estação, Lucia sentiu o chispe do cuspe em gelo a cortar-lhe a face. Tomada de pavor e nojo, pôde ver ainda o moleque afastar-se com o sorvete na mão e sem perder o embalo volver o pescoço e certificar-se em seus olhos de que havia acertado o alvo desejado. Com um olhar maliciosamente brilhante, de prazer sorvia aquele pequeno demônio o sangue vermelho e gelado de Lucia.

Em terror, apenas um pensamento lhe veio, um pedido, que de tão urgente era essencialmente uma ordem:que o trem partisse depressa dali! As pessoas continuavam entrando e saindo pela porta automática do trem, enquanto este, em silêncio, comunicava a inexorabilidade de quem não faz mais do que cumprir sua obrigação de carregar as pessoas a seus destinos.

Foi no momento em que tinha de ser, as portas se fechando, as engrenagens do trem lentamente retomando o movimento, o som das máquinas voltando a ativar a respiração de Lucia, quase em alívio, quando o som de uma outra cusparada, atirada da boca ao chão, declarou-lhe a confirmação da diabólica sentença que lhe havia sido destinada. De quem o fez, apenas pressentira a imagem de que havia sido um homem.

Continuando em seu percurso de serpente dourada, o terem levava Lucia que, atordoada, ainda pôde perceber a mudança súbita de paisagem: a água estanque em represa, o lixo, o entulho em montanhas, e em meio àquela fétida podridão, mulheres e crianças apinhadas vasculhavam por alguma coisa que ainda tivesse valor, na vida? No ser humano?

Um trem fazendo o percurso inverso cobriu-lhe a visão, e sem poder suportar mais, Lucia deixou-se cair perplexa no banco do trem até que ao ouvir o nome da estação em que teria de descer, precipitou-se pela porta afora, os olhos anuviados e lhe encobrir o caminho que ela, em fuga, perseguiu até o ponto em que pegaria o ônibus que finalmente a deixaria em casa.Pela sua face escorria a umidade de seu sal, líquido placentário embebido em gelo e gotajantes roupas lavadas,chuva de tanto trabalho suado, de tempestivos aniversários comemorados em vão.

Cabisbaixa, com a alma gelificada, anestesiada de dor, no farol fechado Lucia levantou os olhos e leu no ônibus parado à frente uma única pichação:BOB CUSPE. Sem mais poder se conter, Lucia berrou à vida que a obrigara a renascer seu primeiro choro - PATÉTICAAA...

Quando chegou em casa, todos dormiam. Cansada, Lucia deixou seu corpo cair sobre a cama e pôde ainda sentir a brisa morna que entrava pela janela antes de cerrar os olhos e ouvir distante o tiquetaquear rítimico e atemporal de seu coração, vagabundo, de materialidade descartável.

  1989