OLHO D'ÁGUA

03/07/2011 18:38

 

OLHO D’ÁGUA

 

O vento frio batia em sua face, agredindo-a. Os passos eram rápidos e tensos na noite escura como se fosse o frio matéria densa a ser vencida. Obstáculo a ser transposto, como se chegando a algum lugar, houvesse calor, aconchego à sua dor.

O vento gemia em suas lembranças, o choro convulso preso à garganta. O encontro fortuito em algumas esquinas daquele tipo que não era o de um jovem rapaz, tão pouco de um menino grande porque não se é mais menino e ainda não concebe em si o homem que ainda será. Também não é um jovem porque não tem os sonhos de conquista de todos os jovens – do corpo e do mundo. O corpo esguio e frágil, os dedos e rosto finos, calado, num silêncio de ser que se tece em casulo, sem saber que o faz, mas apenas porque sua natureza o faz assim.

Era a imagem do filho distante que lhe fora roubado, numa violência que a contorcia constantemente. Se tivesse morrido, seria mais fácil. Na continuidade da vida após a morte, decerto iria comunicar-se, em cartas por mãos de médiuns, em sonhos. Haveria a continuidade... Se houvesse casado, ido morar no estrangeiro... é da vida que os filhos cresçam e sejam do mundo. Mesmo assim, do outro lado da Terra, estariam unidos pelo laço que dizem sagrado, que une mãe e filho.

Roubaram-lhe o filho quando era o tempo em sua natureza de mãe  estar ali olhando, observando o casulo em seu oculto processo de mutação. Amando em secreto orgulho seu papel de co-criadora de Deus daquele ser amorável e incógnito. E ao filho cometeram o pior dos crimes a um ser – roubaram-lhe a alma.

A dor latejava-lhe as faces frias, as estranhas dilaceradas, como filho arrancado à força por garras em cesária prematura, subitamente, sem anestésico, sem amparo, sem médico. Os dias cresciam longos como a noite de inverno que se aprofunda escura e indistinta, sem fim, sem a promessa de primavera e descanso, de esperança do florescer.

A imagem daqueles meninos, tantos num dia só, como espectros de sua mente, enrodilhavam-na mais ainda. De que serviria mostrar a Deus seu ventre dilacerado e as mãos vazias? Não era Maria a Lhe ofertar o seu filho, cuja missão era o de entregar-se em sacrifício.Maria fora a única a saber de Cristo em seu período de casulo. Eu era apenas um grito petrificado, a enorme escuridão, o esmagamento da própria alma, o corpo rasgando, todo dia, numa luta vã, contra o tempo, infinito. Deusa Kali lutando contra o mal renascente. Luta sem vitória. Correndo atrás de Deus rogava-Lhe compaixão, o esquecimento, a possibilidade do fim e do recomeço.

Nessa ruptura, o filho vivencia o ciclo que se repete, sem fim, num faz-de-conta que é normal. O coração encoberto,como um aleijão que se carrega e ao qual mal se acostuma. Mas é tarefa do menino, uma de suas tarefas, sobre si mesmo, para tornar-se homem, quebrar o ciclo. Para ter um dia o amor completo e puro, de um homem por uma mulher, e não um amor capenga que busca encobrir as próprias deficiências.

Mas de Maria e Kali, extraio o sumo dos sentimentos de mãe, porque o amo tão profundamente, e à mãe, o amor que sente, basta para ser mãe. É pleno e se preenche de amor. E assim caminho pela vida, em minha nova natureza, transbordando para o mundo o sentimento que flui incessantemente, como olho d’água em meu ser.

 

06/11