PRIMEIROS PASSOS

26/03/2011 18:30

 

PRIMEIROS PASSOS

 

Sede da vanguarda paulista e reduto da intelectualidade de oposição ao regime militar nos anos 70, uma das maiores universidades de São Paulo coroou a década com a menina dos olhos das Ciências Humanas: o curso de bacharelado em jornalismo.

Peirce, Escola de Frankfurt, constituíam então apenas os primeiros passos na formação de jovens que viriam a ser os porta-vozes da imprensa-noveau, revolucionários transformando o mass-mídia.

Na sala de aula, sobre a mesa do lente, esferas coloridas de um brilho chocante à vista e um cheiro agridoce no ar que lembravam as lancheiras usadas na infância, anunciavam que aquela segunda feira que abria o segundo semestre aos alunos do segundo ano do curso de jornalismo seria mais um daqueles dias em que o professor sofria de verdadeiras crises simbióticas em terceiro grau.

Recém chegado do Ceasa, maior entreposto de alimentos na capital, trouxe o mestre-cuca nada menos que uma caixa repleta de laranjas – quarenta e cinco ao todo-, quantidade igual à de alunos inscritos na disciplina.

O grupo de estudantes adeptos da nova onda metafísica que inaugurava a década pensou logo tratar-se de uma aula experimental sobre alquimia. Porém, viram logo ser a demonstração inviável, visto não ter o mestre-escola se munido de espremedor manual, muito menos de um elétrico, ficando assim insaciada a sede de novos conhecimentos daqueles alunos.

Outro grupo, de aficionados de esquerda, imaginou que ali se daria uma demonstração ao vivo de socialização dos meios de produção didáticos, e ameaçaram com uma greve que só foi debelada quando se certificaram de que ali haveria laranja para todos.

Outros, pós-modernamente discípulos, discutiam se seria possível uma reprodução in loco de caráter impressionista. Mal viram as laranjas, sentiram o desafio de dispô-las sobre a mesa em posição de estarem prestes a cair sem deixá-las despencar tal qual Oranges de Cèzanne.

Depois de democraticamente discutida qual a primeira impressão tida pelos alunos diante da caixa de laranjas, no que Fabiano foi rechaçado por dizer que o professor estava metaforizado de feirante e visto não estar o mestre em pauta, passou-se logo à exposição de qual seria o objetivo da aula.

Calmamente, como devem falar os educadores, o mestre-sala explicou a-ten-ta-men-te que cada aluno deveria escolher uma laranja para si e após observá-la, colocá-la novamente dentro da caixa. Em seguida, de olhos fechados, deveriam através do tato descobrir qual havia sido a fruta escolhida para si.

Cassio, percebendo a potencialidade lúdica da aula, escolheu uma bem macia e polpuda, e que de tão apertada, no final da aula lhe deixou um larga mancha nas calças.

Fábio e Cícero, um pouco mais ousados, apalparam não só as laranjas, mas também os braços roliços que escarafunchavam a caixa à procura do objeto semiótico.

Tércio, ousadíssimo, esfregou-se em um braço bem cabeludo, no que ouviu um grosso “tira a mão daí que eu não sou laranja!”. Era Valério que nessa abriu bem os olhos para ver quem era o engraçadinho.

Katia, percebendo a ausência de Lucia naquele dia, embolsou uma fruta para apresentar ao mestre no final da aula e assim garantir ponto positivo na disciplina.

Claudio, que a duras penas pagava o curso, chegando atrasado à sala de aula e deparando-se com seus colegas de caras franzidas gesticulando qual cegos, pensou logo tratar-se de uma aula de iniciação para jornalismo em braile. Mas como em terra de maneta quem tem perna é rei, Claudio foi dando o fora, mas não sem antes acenar para o professor com uma sonora união de ponta do polegar com o indicador e nunca ninguém mais ouviu falar dele.

Quem imaginou que tudo não passou de uma grande laranjice, acertou! E como prêmio, um esférico zero no histórico escolar.

Para o ano que vem, bananas!

10/89