RECEITA DE AVÓ

07/03/2011 14:09

 

RECEITA DE AVÓ

 

Não gosto de dar um tom saudosista às coisas. Soa como fuga à vida presente, e pior ainda, como desfeita a Deus, já que a vida em si é um presente.

Uma grande conquista que se fez ao longo do século passado foi a emancipação da mulher. De ser tutelado, sem direito a estudo e a voto, ao lado de inúmeras conquistas, cabe atualmente a ela a manutenção e o cuidado de quase a metade dos lares brasileiros. Como se fosse o ônus pago à própria independência, sua jornada, triplicou: é o trabalho fora de casa, os afazeres domésticos, a educação dos filhos.

E a educação dos filhos tornou-se tarefa hercúlea para sobrepor-se ao cansaço do dia. Dar atenção, acompanhar as tarefas da escola, entre outras atividades. Embora muitos digam que quantidade não é qualidade, e o que importa é como é aproveitado o tempo junto aos filhos (teorizar é muito fácil!), deparamo-nos com gerações-creche e uma legião de órfãos, se não de fato, mas de estado.

Talvez porque a natureza exija que cada ser vivencie a plenitude de suas potencialidades, por contingência do sistema social e econômico, coube às mais pobres, tão logo se vêm avós, tornarem-se novamente mães devido à falta de vagas em creches. Talvez possam agora aprender e exercitar o desfrute de ser mãe, já que a entrada juvenil no mercado de trabalho lhes roubou a maternidade em tempo integral.Mas acabam, sendo, enfim, mães, e não avós.

As mais favorecidas financeiramente, em meio à correria do dia a dia, sofrem da síndrome de avó. Inconscientemente associam o nascimento dos netos à imagem das velhinhas de cabelo branco a preparar biscoitos, mesmo que a própria imagem as confunda como irmãs dos filhos (só Deus sabe com que esforço!). Ser chamada de avó então, insulto pior não poderia haver! A “camaradagem” obriga a serem chamadas por um apelido de fácil pronúncia e mais tarde pelo próprio nome. Assim esquivam-se da comprometedora alcunha de avó, limitando-se à satisfação dos pedidos consumistas dos netos, imposto aos pequenos desde a mais tenra idade através da publicidade.

Uma amiga, mãe de um rapaz um tanto conquistador, viu-se de repente avó de um casal de crianças, praticamente gêmeas. Com apenas dois meses de diferença entre elas, e com a paternidade confirmada através de DNA, ela  abraçou ambas de corpo e de coração.Contemporizou como pôde o conflito aberto entre duas mães de famílias diferentes e que puseram-se na incômoda posição de rivais,a despeito de terem um pai em comum.A peleja não chegou a uma utópica festa de confraternização,mas deixou de ser inconciliável. Os irmãos viam-se com certa freqüência e estavam sempre juntos às comemorações da família paterna.

Com minha amiga descobri que avó, como a que havia antigamente- aquela que fazia o doce preferido, que com uma paciência infinda alimentava os netos relutantes na introdução de alimentos sólidos e saudáveis, que inventava brincadeiras dando asas à imaginação criativa dos netos, que sem pudor ensinava a dançar, ensinando-os a descobrir o próprio corpo ao som de uma música (música de verdade!)-não se trata de mera contingência histórica e cultural.

Com ela aprendi que ser avó, é um ato de amor, compromisso e aprendizado. A menos que ocorresse algum impedimento sério, não passava um final de semana sem visitar os netos. Entregava-se a eles em carinhos e descobertas mútuas, e assim foram se construindo, avós e netos.

Mais do que mero personagem familiar, os netos de minha amiga terão para sempre em suas lembranças a memória afetiva de alguém muito próximo e amado a que eles chamavam de vovó. E vovó, diferentemente de avó, ou de mera diversidade de nomenclatura que define mãe do pai ou da mãe, transcende o tempo, atravessa os séculos, culturas e conflitos, pois apenas as relações construídas com profundo afeto permanecem.

Abençoadas as avós que se embrenham na estrada divina de se tornarem vovós.

Sandra Caldas

12/2010