RITUAL DE INICIAÇÃO

22/05/2011 20:21

 

RITUAL DE INICIAÇÃO

 

Tentei passar aos meus filhos minha grande paixão: o mar. Os dias azuis e quentes, a areia macia e clara, a sonoridade do mar que nos circunda como se estivéssemos mergulhados dentro e fora dele. Seu contínuo movimento de dança eterna, no vai e vem de sucessivas ondas que nunca se repetem. O ar úmido com aquele cheiro forte de maresia.

Como se fosse ali acontecer um ritual de iniciação segurando meu filho pela mão, inspiro profundamente aquele perfume marítimo e orgulhosamente apresento a ele, então com cerca de dois anos, esse ser mágico e lindo, Senhor de onde emerge a vida: o Mar.

Mas diante daquela imensidão borbulhante, a única reação dele foi de pavor. Choro, gritos, o olhar arregalado, suas mãos pequeninas se agarrando às minhas pernas, o olhar assustado procurando a terra e de onde não mais se visse o mar. E eu, totalmente frustrada sem entender como alguém poderia não responder ao chamado daquele deus mágico, e com sentimento de culpa, me sentia como se tivesse realizado qualquer ritual tribal de iniciação baseado em tortura.Mesmo diante daquela mansa água que lança seu último carinho à areia antes de recolher-se indistinta ao oceano, tremia de pavor.

Levou muito, muito tempo, pelo menos para mim, para ensiná-los a vivenciar a cumplicidade da face lúdica do mar que nos chama ao espírito puro de criança a ir com ele brincar em suas ondas volumosas e espumantes.

O domingo era ideal. O céu de um azul turquesa, a praia, pequena, de um condomínio semi-fechado, as casas de veraneio ocultas pelas árvores e arbustos, e apenas duas entradas laterais, em chão de areia, davam acesso à pequena praia arqueada em baía. O sol ardente faiscava na água como pequenas estrelas ofertadas em plena luz do dia. As ondas, ideais para se pegar um “jacaré”: impetuosas, se formavam próximas à beira-mar, contínuas. E a praia, que não era de tombo, proporcionava um chão plano sem o arrasto de volta ou a surpresa de um imenso buraco. Naquele dia o mar estava ideal para todo o tipo de brincadeira e havia se transformado em parque de diversões, repleto de crianças, com suas pranchas de isopor, body-boards,bóias ou mesmo sem nada, brincando de pular ou de bater seus corpos de encontro às ondas. No ar, o ronronado do mar e a algazarra das crianças transbordavam alegria. Meu pequeno  que já ia a seus quatro anos, mas ainda repleto de pavor, lançou mão de seu jeito teatral e sarcástico para livrar-se do que parecia ser um encaminhamento ao afogamento. Ao avistar uma criança brincando com sua bóia com cara de orca, aproveitou para apontar o dedo acusador e gritar  que ali havia uma baleia. Acabei por deixá-lo ali em seu porto seguro de areia escaldante e segui o irresistível impulso de entrar no mar.

À medida que eles foram crescendo penso que notaram que mais do que teima de mãe, meu desejo era o de ensinar-lhes a usufruir do imenso prazer lúdico proporcionado pelo mar: o estremecimento do contato frio com os pés, as pequenas ondas resfolegando nas canelas, o corpo vencendo a grande massa de água até a entrega inevitável – o mergulho de cabeça, a emersão, a súbita elevação e descida do corpo quase sem gravidade pela onda que passa sem rebentar, a água escorrendo pelo rosto, seu sabor salgado de líquido primordial aguçando as papilas.

Agora, agarrada à parte frontal de uma prancha de isopor, o abdômen bem pressionado à sua parte anterior, olho continuamente para trás analisando a próxima onda avolumando-se lentamente e a içar meus pés do fundo. Suavemente pouso novamente no solo. Ainda não era a onda ideal. E de novo, aguardo, passo por novo flutuar, até que ela vem avolumando-se imensa atrás de mim e posiciono-me, as mãos firmes, semi deitada sobre a prancha,as pernas juntas e eretas sobre a água, face voltada para frente, e juntamente com a onda estouro num êxtase em meio à espuma que me envolve e me leva veloz à beira da areia. Só para levantar-me, a prancha erguida para não ser levada pelas ondas, caminho vencendo a massa de água para começar tudo novamente.

Mas aí também começou minha tortura. Minha alegria era grande e visível demais. Além dos meus filhos, uma fila de crianças se formava em volta de mim implorando pela vez de usar a prancha. E logo eu me transformava em tirana. A cada dois empréstimos, uma era minha, para meu deleite e vergonha dos adultos que me acompanhavam no passeio à praia e achavam um descalabro uma mulher sair pela praia com prancha de isopor debaixo do braço, e ainda por cima disputando brinquedo com criança. E se não tivesse uma grande, ia uma pequena mesmo! Com o tempo aprendi a levar duas pranchas: uma para mim, outra para os outros.

Não sei se meus filhos, hoje jovens adultos, olham com desdém uma prancha, afogando a criança que existe dentro de si. Espero que não. Desejo que eles e que todos que fazem um passeio à praia saibam experimentar o genuíno prazer proporcionado, de graça, pelo mar. Basta se entregar, sem pudor.

 

05/11