A VIAGEM

08/03/2011 13:42

 

A VIAGEM

 

Para Mario aquele era um dia tão especial quanto outros que o fizeram feliz nos últimos anos. À esposa confortavelmente instalada, às filhas crescidas, aos rebentos de seus rebentos, aos amigos com frequência reunidos, ao time de futebol campeão não sei quantas vezes, ao sucesso nos negócios, somava-se hoje outra alegria, pequena recompensa que se dava ao direito após tantos anos de trabalho em prol de tudo quanto amava.

Numa tomada de decisão inadiável, Mario levantou-se bem cedinho para ir comprar algumas cabeças de gado que levaria à sua fazenda, pelo puro prazer de vê-las ruminar sonolentamente em seu pasto.Agora, que o campo atingia seu ponto máximo de verdejância, pareceu-lhe um absurdo, uma redundante  autotélica autofagia tamanha abundância em abandono.

Uma brisa suave soprava fria lá fora enquanto Mario tomava o café preto ao lado do chofer e companheiro de tantos anos. Naquela manhã a estrada estava especialmente livre de trânsito, limpa, de uma calma vazia, livre da necessidade de qualquer acréscimo sobre si mesma. Tudo era tão manso que quando chegaram àquele pequeno sítio do interior, Mario sequer surpreendeou-se diante da ausência do vendedor. Servil, o chofer fechou a porteira de entrada enquanto Mario aguardava dentro do carro. Quanto tempo levara para aprender a dirigir e  comprar aquele carro de que tanto gostava, e no entanto,  há quanto tempo contratara aquele homem para dirigir para ele? Com a subserviência da igualdade, solicitamente Mario pediu ao companheiro de anos que trocassem de lugar. Com prazer docemente assumido, segurou firme no pequeno círculo da direção.

Chovia muito e a estrada de volta não permitia mais que a visualização de uma névoa, umidade concentrada do mundo que no instante imediato que toca o chão rebate etérea  para retornar novamente à terra multiplicada em mil, em milhões, desdobrando-se infinitamente nesse movimento contínuo desencadeado pelo aguaçeiro diluvial.

À dança da chuva rodopiou o carro, e em Mario, a imagem da casa, a família, os netos, o dinheiro, a fazenda, os negócios, os amigos, o primeiro diploma, a mãe, o pai, os irmãos, o peão, o choro, o frio, o abandono, a aconchegante poça uterina, e subitamente, numa força centrípeta, Mario foi expulso de dentro do carro. Em integridade devota, o chofer retirou Mario do asfalto cinzento.

A gota de um vermelho ainda pulsante sobre o imaculado cetim branco onde colocaram Mario, despercebidamente constrastava com os olhos vermelhos e inchados dos que o rodeavam. Lentamente o vermelho perdia o tom, e Mario, a intensidade de suas sensações. Com as mãos amoravelmente entrecruzadas sobre o peito pela esposa, Mario,como após o êxtase de fazer amor, preguiçosamente sorria e entreabria os olhos em sua nova dimensão volátil enquanto esquecia-se de seu corpo duro, frio, inerte.

14/12/88